REFRAÇÃO NEGATIVA

Walter da Silva Santos 
Colégio Pedro II, Rio de Janeiro

Antonio Carlos Fontes dos Santos, Carlos Eduardo Aguiar
Instituto de Física, Universidade Federal do Rio de Janeiro

1. Introdução

Em 1968, o físico russo Victor Veselago chamou atenção para o fato de que nenhum princípio fundamental proíbe a existência de materiais com índice de refração negativo. Mais ainda, Veselago demonstrou que as propriedades óticas de tais materiais seriam muito estranhas. Por exemplo, num meio com índice de refração negativo as frentes de onda se aproximariam de fonte de luz ao invés de afastar-se dela. O efeito Doppler também seria diferente – um objeto luminoso movendo-se para longe do observador pareceria mais azul ao invés de mais vermelho.

O fenômeno mais interessante previsto por Veselago aconteceria na interface entre um meio com índice de refração negativo e outro com índice positivo. Um raio de luz que incidisse sobre a fronteira entre os dois meios seria refratado para o lado “errado” da linha normal. Ao invés de cruzar essa linha, como ocorre quando ambos os meios têm índices de refração positivos (figura 1a), o raio permaneceria sempre do mesmo lado da normal (figura 1b).

Figura 1: Desvio do raio de luz ao penetrar num meio com
índice de refração positivo (a) e negativo (b).

Os materiais propostos por Veselago – que ele chamou de materiais "canhotos" – despertaram bastante interesse inicialmente. Entretanto, o insucesso em encontrar meios com índice de refração negativo terminou por relegar a idéia ao esquecimento. Essa situação durou até o final dos anos 90, quando se descobriu que era possível produzir “metamateriais” com índice de refração negativo. Como o nome indica, metamateriais não são substâncias comuns – são obras de microengenharia, estruturas periódicas formadas pelo arranjo regular de minúsculos elementos metálicos. Radiação eletromagnética de grande comprimento de onda (muito maior que o tamanho dos circuitos) propaga-se por um metamaterial como se ele fosse um meio homogêneo, dotado de índice de refração. Escolhendo apropriadamente os componentes elementares (as "metamoléculas") é possível obter os mais diferentes índices de refração, inclusive valores negativos.

A produção de metamateriais renovou o interesse nas aplicações da refração negativa e deu origem a intensa atividade experimental e teórica. Parece ser possível, por exemplo, usar esses materiais para desenvolver superlentes muito superiores às lentes tradicionais. Uma aplicação ainda mais intrigante são os mantos de invisibilidade, metamateriais com geometria e índice de refração projetados para tornar invisíveis certas regiões do espaço.

Nós estudaremos aqui algumas das curiosas propriedades óticas dos meios com índice de refração negativo. Este texto é um "ensaio ativo", o que significa que podemos interagir com ele. Você verá que maior parte das figuras (aquelas que se assemelham a um caderno com espiral) podem ser modificadas com simples movimentos do mouse. É possível alterar dinamicamente essas figuras, deslocando objetos e mudando as propriedades dos sistemas óticos nelas apresentados. Essa interatividade foi conseguida produzindo as figuras com um programa de geometria dinâmica, o Tabulae, desenvolvido na Universidade Federal do Rio de Janeiro.

2. Refração negativa em uma interface

Vamos considerar dois meios de índices de refração diferentes separados por uma fronteira plana, e uma fonte luminosa imersa em um deles. A figura 2 mostra os raios de luz que saem da fonte, no caso em que os dois índices de refração são positivos. Vemos que os raios refratados na parte superior parecem divergir de uma região situada abaixo da superfície – para um observador acima da interface a imagem do objeto é formada no meio inferior, a uma “profundidade aparente” diversa daquela em que o objeto se encontra. 

Experimente modificar a figura 2. Por exemplo, use o mousepara mudar a posição da fonte luminosa (é só clicar e arrastar); você verá que a distribuição dos raios luminosos acompanhará os movimentos realizados. Mude também o índice de refração do meio onde está o objeto, aumentando ou diminuindo o comprimento do segmento de reta que indica seu valor (clique e arraste uma extremidade do segmento). Observe o ângulo de reflexão total e como ele depende do índice de refração.


Figura 2: Refração de raios luminosos na interface entre dois meios com índices de refração positivos.
O índice de refração do meio inferior pode ser modificado alterando-se o comprimento do segmento
de reta no canto inferior esquerdo. O índice de refração do meio superior é 1 ("vácuo"). A posição
do objeto também pode ser mudada.


A situação muda drasticamente se um dos meios tiver índice de refração negativo. A figura 3 mostra o que ocorre quando o índice de refração do meio inferior, onde está imerso o objeto, é negativo. O comportamento dos raios refratados fica totalmente diferente: eles tendem a convergir no meio superior. Isso significa que a imagem do objeto luminoso é formada acima da superfície, ao contrário do que acontece na refração usual. Em outras palavras, uma moeda no fundo de uma piscina com “água” de índice de refração negativo parecerá estar acima da superfície – a profundidade aparente é substituída por uma altura aparente. A figura 3 também é interativa: você pode mudar a posição do objeto e  os índices de refração utilizando o mouse.


Figura 3: Desvio dos raios de luz quando o meio contendo o objeto tem índice de refração negativo.
É possível interagir com a figura, mudando a posição do objeto e o índice de refração.


A imagem do objeto na figura 3 não tem uma posição bem definida. Dependendo do ponto de observação, a imagem desloca-se ao longo de uma cáustica. Entretanto, se o índice de refração da região inferior for n = −1, a cáustica desaparece e uma imagem perfeita é formada, como pode ser visto na figura 4 (na verdade, mudando o índice de refração da figura 3 é fácil reproduzir a figura 4).  


Figura 4: Imagem de um objeto imerso em um meio com índice de refração n = −1.



3. A superlente plana

Se o material com índice de refração negativo tiver a forma de uma placa plana (como um vidro de janela), surgem novos efeitos interessantes. A figura 5 mostra o que acontece com a luz que passa por uma placa de material com índice de refração positivo n. Fora da placa o índice de refração é 1. O efeito da refração pela placa é a formação de uma imagem virtual nas proximidades do objeto.
 


Figura 5: Refração da luz por uma placa com índice de refração positivo. Você pode mudar
o índice de refração da placa, sua espessura e localização, e a posição do objeto.


Algo bem diferente acontece se a placa tiver índice de refração negativo, como pode ser visto na figura 6. O índice de refração da placa é n = −1. Duas imagens reais são formadas, uma dentro da placa e outra do lado oposto àquele em que se encontra o objeto. Se a janela de uma sala tiver “vidro” com índice de refração negativo, objetos do lado de fora parecerão estar do lado de dentro (e vice-versa).


Figura 6: Refração da luz por uma placa com índice de refração negativo. Você pode mudar
o índice de refração da placa, sua espessura e localização, e a posição do objeto.


As imagens produzidas pela placa com n = −1 têm uma característica notável: elas não sofrem o efeito de aberrações e estão perfeitamente em foco. Também pode ser demonstrado que tal placa não reflete a luz incidente. Essas duas propriedades fazem da placa de refração negativa uma lente de excelente qualidade, frequentemente chamada de lente de Veselago. Mais ainda, a resolução das imagens obtidas não é limitada por efeitos difrativos, como ocorre com as lentes normais. Com a lente de Veselago é possível focalizar a luz em uma área de dimensões bem menores que o comprimento de onda. Por essas razões a lente de Veselago também é conhecida como superlente ou lente perfeita.

Deve ser notado, entretanto, que para objetos distantes as imagens formadas pela lente de Veselago deixam de ser reais, como pode ser notado modificando-se a figura 6 (afaste o objeto da placa, ou reduza sua espessura).

4. Refração negativa por um prisma

Um prisma de índice de refração negativo também cria efeitos inesperados. Vamos considerar apenas o caso em que o ângulo de abertura do prisma é 90º e o índice de refração é n = −1. A figura 7 mostra o caminho seguido por um feixe de raios luminosos emitido por um objeto localizado próximo ao vértice do prisma. Vemos que uma imagem real é formada do outro lado da “quina” de refração negativa. O mais interessante é que, após passar pela quina, os raios refratados têm a mesma direção dos raios incidentes, mas sentido oposto. O prisma de refração negativa funciona como um par de espelhos perpendiculares, um sistema ótico discutido com frequência nos cursos introdutórios de física.


Figura 7: Refração por uma “quina” com n = −1. Você
pode mudar a posição do objeto e da quina.


5. Antimatéria ótica

Apesar do nome, a lente de Veselago não é propriamente uma lente. Por exemplo, ela não tem uma distância focal – para objetos próximos ela atua como lente convergente e produz imagens reais, para objetos distantes ela age como lente divergente e gera imagens virtuais (veja isso manipulando a figura 6).

Uma caracterização mais interessante da lente de Veselago foi proposta por Pendry e Ramakrishna. Segundo eles, a placa de n = −1 comporta-se como uma região de “antimatéria ótica”, que cancela oticamente uma região vizinha de mesma largura e índice de refração n = 1. Esse é um caso particular de um teorema geral: duas placas adjacentes de mesma largura e índices de refração opostos se aniquilam oticamente. A figura 8 ilustra o teorema. Os efeitos óticos da região com índice de refração n1(x,y,z) são cancelados pelos região onde o índice é n2(x,y,z) = −n1(x,y, −z).


Figura 8: Ilustração do teorema de Pendry-Ramakrishna. Os efeitos
óticos de regiões com índices de refração opostos se cancelam.


Podemos usar a geometria dinâmica para verificar a validade desse teorema. A figura 9 mostra raios de luz que passam por regiões adjacentes de mesma espessura, com índices de refração iguais em módulo mas de sinais contrários. Vemos que, ao deixar a segunda placa, os raios estão na mesma configuração que possuíam ao entrar na primeira; é como se as duas placas não existissem (isso fica bem fácil de observar se você diminuir a espessura das placas). O mesmo ocorre quando a ordem das placas é trocada, como mostra a figura 10. O cancelamento ótico não se altera quando mudamos os índices de refração, a espessura das placas ou a posição do objeto, o que mostra que o efeito não é um acidente criado por uma configuração específica.


Figura 9: A antimatéria ótica. A placa inferior, com índice de refração positivo n, tem seus efeitos
óticos cancelados pela placa superior, que tem a mesma espessura e índice de refração −n. É 
possível mudar a espessura e índice de refração das placas, assim como a posição do objeto.


Figura 10: O mesmo que na figura 10, com as placas em ordem invertida.


 

6. Comentários finais

Os metamateriais com índice de refração negativo criaram um domínio novo na ótica, cuja exploração promete muitas surpresas e aplicações revolucionárias. Superlentes e antimatéria ótica são apenas alguns exemplos do que pode ser feito com esses materiais. O ensino de física também tem a ganhar com tais desenvolvimentos pois, como vimos neste "ensaio ativo", a discussão da refração negativa pode ser facilmente incorporado aos cursos introdutórios de ótica. Fazendo uso dos recursos interativos da geometria dinâmica (daí o "ativo" do ensaio), apresentamos alguns sistemas óticos com refração negativa e investigamos suas propriedades surpreendentes. Esperamos ter demonstrado que os efeitos fascinantes da refração negativa podem ser um elemento de motivação para o estudo da ótica geométrica, mostrando que esta é uma área onde progressos importantes e atuais podem ser acompanhados com relativa facilidade pelos estudantes do ensino médio.
 

Este trabalho foi parcialmente financiado pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj).
 

Para saber mais: